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domingo, 20 de julho de 2008

Saúde é uma droga

A pior notícia que se pode receber de um médico é que você está bem. Então tudo deixa de fazer sentido, nada mais existe, seus sintomas são meras alucinações de uma mente extravagantemente cansada, uma forma de seu estresse clamar por socorro. Ou isso, ou na verdade se tem uma nova doença ainda desconhecida e que provavelmente não tem cura. Contudo, a hipótese de conseguir se recuperar sozinho é meramente ilustrativa, como bem sabem os brasileiros; numa nação em que a automedicação se faz um costume quase sagrado é difícil alguém visitar o médico quando não se é para dar parabéns pelo aniversário. Isto sem falar que essa notícia impede que o cidadão consiga seu atestado médico para poder ter uma semaninha de folga sem precisar descontar das férias. No entanto a notícia de que se tem algo, independentemente da gravidade, basta ter um nome feio e ininteligível por um cérebro mediano, causa o maior dos alvoroços. Não deveria, oras, não se vai ao médico para se saber o que se tem? Ótimo, você alcançou seu objetivo. Agora resta saber o procedimento da cura e pronto, problema resolvido e ainda dá para ir ao churrasco do vizinho.

Médicos são criaturas completamente desprovidas de compaixão. Devem ser sádicos que têm suas necessidades satisfeitas ao ver o rosto de terceiros se distorcerem convulsionamente ao receberem a notícia de que têm pressão alta e nunca mais poderão saborear aquele torresminho às quartas. Sempre detestei médicos, a melhor notícia que ouvi da boca deles foi que eu precisava de um psiquiatra. Nunca fui ao psiquiatra, este deve ser o pior de todos, além de não nos trazer à realidade medíocre e cruel em que vivemos sem razão de ser, ainda nos diz que ela é uma invencionice de uma mente desfigurada e doentia.

Piores que os médicos só seus pacientes. Há vários tipos deles: o dependente, este quer receita para tudo e todos, não acredita na homeopatia ou curas alternativas, é altamente farmacológico, e, quando vai comprar a casa própria, a primeira coisa a se pensar é se o pronto-socorro fica a mais de dois quarteirões e, mesmo quando não fica, passa as horas vagas traçando planos de fuga para o pronto socorro nos mais diversos horários: tudo para que se chegue com segurança e rapidez. Há também os saudáveis, estes são tão detestados pelos médicos quanto os dependentes. Os saudáveis o são apenas em sua mente, apesar da febre de 40 graus, apesar do sangramento intestinal recusam qualquer recurso da medicina moderna alegando que está bem ou, quando realmente estiver passando mal, que aquele chazinho que sua avozinha costumava tomar vai o curar; com estes os médicos tem trabalho dobrado, não basta curá-los, tem de convencê-los de que precisam ser curados, e haja retórica! Os menos detestados pela sociedade médica são os conformistas, eles vão ao hospital como último recurso, não questionam o tratamento e cumprem tudo à risca, a culpa por ter tomado o xarope que o filho do farmacêutico dera dias antes é tão grande que eles não se sentem nem no direito de perguntar se vão ficar bem, apenas esperam que sim. E, por fim, há os realistas. Estes sabem que nada de que sentem é fruto de seu psicológico, sabem o que os medicamentos fazem em seu organismo e não basta a eles saber o nome da doença, querem tudo: como se adquire, se ela evolue, o que fazer, o que terão de deixar de comer. Os realistas sabem que não devem se automedicar, altamente calculista e frios, eles sabem que médicos, como seres humanos soberbos, são passíveis de erros. Realistas não vêem sentido no tratamento que salva sua vida tirando a própria vida, como é o caso da proibição daquele torresminho às quartas: “Oras, se eu comer eu morro, se eu não comer eu também morro, então...”.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Um pouco

Os cacos de vidro esparramados pelo chão lembram um pouco a minha vida. Toda trincada e estilhaça. Separada em cacos pelo chão do destino. Pisada, varrida e por fim, no lixo. Os cacos de vidro esparramados pelo chão lembram um pouco a minha vida. Que se quebrou inteira e se mostrou partida quando o meu era só meu apesar de ter dado a você. Os cacos de vidro no chão já formaram, um dia, algo uno, que já não o é mais. Um dia, um pouco de vidro caiu e rebentou numa cachoeira de vidros, menores e menores. Um pouco de vidro é o que resta ao final, para ser varrido e posto no lixo.

Minha vida também lembra um pouco a sua, um pouco de morte em contraste comigo; um pouco de sabor em contraste ao cinza; um pouco de barreiras em contraste a sonhos. Eu que sempre tive um pouco de insossa, de chata e de pedante. Um pouco de tudo e sempre um nada. Sempre minha vida foi pouco grande e muito medíocre, pouco de aventura e muito de rotina. Um pouco avessa aos valores sociais, mas só um pouco, só o que me basta. Sempre quis um pouco de tudo, e sempre tive pouco ou nada.

Um pouco de nada é o que faz tudo. Um pouco de não-paranóia com um pouco de não-preocupação é o que dá gosto na sopa. Afinal, é melhor ter um pouco de não-tédio do que passar a vida procurando por uma felicidade inóspita.

Todas as pessoas dizem que são um pouco. Um pouco de tudo, de marceneiro, carpinteiro, ferreiro, ferrenhas, ferradas. As pessoas dizem: de louco todo mundo tem um pouco. Mas a verdade é que o normal é uma utopia criada pelo homem para se sentir menos distinto dos demais; e a verdade é que de normal ninguém tem um pouco. De bruxas e cavanhaques que entremeiam meus sonhos cavaleirescos ainda há um pouco de sanidade, o que me torna mais insana do que realmente sou. Mas o caso é que sempre estou e sempre posso mudar, mudar um pouco, mas que baste para tanger outros horizontes.

Ainda pouco é o que penso ou que o que deixo de sentir. Pouco, sempre é tudo pouco e mirrado nos corações e mentes humanos, conforme se abatem os pássaros mais altivos das montanhas para que se estabaquem nos vidros da realidade. Pouco é o sangue que percorre a cabeça, pouco é o sal que salga o mar, pouca é a morte em relação à vida, pouco é o céu que enjaula o ar. O universo é pouco, o calor do sol é pouco, o homem é pouco.

O pouco é uma palavra pouca, de poucas letras, poucos significados, no entanto, de muitas ilusões. Sempre gostei da palavra pouco, sempre quis pouco. Pouca tristeza, pouca mágoa, pouca raiva, poucos amigos verdadeiros, poucas alegrias intensas, escrever poucos textos bons. Algumas coisas me foram poucas, outras me foram fartas... mas acabo por lembrar sempre das poucas, são elas as que marcam, que ferem, que alegram. O pouco sempre é o suficiente, talvez a humanidade seja insatisfeita por sempre desejar o bastante, nunca o pouco.