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sábado, 31 de janeiro de 2009

Os amantes

A luz do dia dissipa os dissabores em forma de canto em que ouço sem atenção. As janelas murmuram sua presença no meu jardim, rosa das brancas, vermelha de sangue e de vergonha.

— Vergonha de mim?

Talvez não, talvez não seja isso, ou seja. A noite se expande pelo céu enraizando sua escuridão nas nuvens. O véu da noite separa os amantes do tempo e a escuridão os acoberta do espaço.

— Mas, e quem disse que somos amantes?
— E quem disse que não somos?
— Os amantes se olham com os ouvidos, se vêem com a boca e se falam com o olhar.

O beijo dos amantes nada mais é que um selo de uma carta, palavras que não precisam ser ditas, escritas com sorrisos de sentimentos, pensadas com a alma. Palavras de amantes não tem morfologia ou sintaxe, só a semântica dentro da mente deles.

Amantes são o desejo da felicidade consolidado na Terra.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A boneca - Parte 1

Talvez eu soubesse que eu sempre fui de mentira, uma imagem inventada a força por uma doente que nem sabe soletrar o nome. Saberia, se ela tivesse um nome, mas ela era coisa, e coisas não merecem nomes. Descobri que era de mentira quando meu pai voltou, depois de 15 anos, da mercearia onde disse que foi comprar cigarros. O mesmo homem que eu vi tantas vezes num retrato na casa de vovó, porque os retratos dele em casa haviam sido queimados num ritual Bantô sete dias depois que ele se foi.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Manifesto dos textos de álcool construídos

Para a alma destilada ao vinho, termos da fuga do passado se revelam mau caminho. E do presságio se fazem destinos mal traçados de tinta escorrida. Vermelha tinta, pingada e maltratada. Riscados os papéis que se acumulam, numa trilha de sons assonoros, folhas de areia pétrea que se esvaem na mais fina brisa, e espalham suas palavras que se infiltram no céus e nos mares, viajando nas veredas aos pares.

Tecelagens de frases imperfeitas, que de serem partidas de sentido falta de ser sabido o paradoxo que é o fascínio. Encanto, vislumbre e sabor, mágicas palavras de alto de álcool teor. Física mal-calculada e regrada, de normas e regras quebradas. De rachado servem-se o legado das Memórias e do Rancor.

Partes de um mesmo todo, acasos e imoralidades. Peças de um quebra-cabeças que do encaixe se fazem atrasadas. Anacrônicos pedaços de um cérebro sem coração, fios que se ligam sem qualquer emoção ou sensação, culpados pelo seu próprio homicídio sem causa, sem dolo, sem culpa, sem nada. E das suas cinzas só resta a efêmera lembrança da palavra que um dia foi, e que numa próxima corda vocal pode vir a ser.
De tanto augúrio que me tem propício
da vetusta arte que me faz arte morta
Um aulete de flauta desencantada
Uma bolha que se estouro numa picada

De tanto que já corri de medo
do nunca que permaneci parado
das pregas da minha venda até
me lembro como se fosse hoje
Talvez porque hoje é ontem
Um dia foi todo o meu passado
E do grito se escolhe o meu presente
Sonhos fazem parte do seu estado

Perniciosos olhos que lanças lançam
De fortuitos auriluzentes cravos de ferro
Seu valor não está em si, está no topo
Topo dos ares sem mel

Ahasverus

De Ícaro me fiz para poder voar, pena que eu esqueci que minhas asas eram de cera... Importa mesmo é que eu voei, mesmo que o tombo tenha sido maior que a queda. Louco que fui de ter me tacado do penhasco, sem ter pensado primeiro nem pensado depois.

Estão achando que eu morri, não? Se assim fosse quem estaria contando essa história? Só se mata quem tem medo de morrer. Eu tenho medo é de viver.

E tendo medo de viver o que eu não queria eu vivia o que eu queria. Eu acho. Quando não se tem certeza de nada a gente acha até que não é mais gente. E então? Sobrou algo afinal?

Sobrei, na verdade nem isso. O que sobrou foi meu corpo atado ao chão com cordas invisíveis aos olhos, as mesmas cordas que apertavam e sufocavam meu coração. Eu não queria morrer ao final, eu só queria deixar de viver aquilo que eu queria, para viver algo real, e a única coisa real que me sobrou foi a tristeza do meu enterro.

Tristeza? Há-há... meu enterro teria sido triste se alguém tivesse ido para sentir a tristeza, mas nem os corvos apareceram. Nem os corvos. Só vermes, mas isso foi depois do enterro, bem depois.

Nasci no meu salto para o fim. Não tem sentido? Como não? Eu não tinha vida antes disso. Eu era só no mundo. O último homem a deixar sua pegada no mundo. O último a sentir o gosto da terra na boca. Não tenho mãe, nem nunca tive. Fez falta?

Como posso saber se uma mãe faz falta? Só sabendo como é uma mãe e o que ela faz. Eu nem sei... Não sei nem quem eu sou, o meu nome, quanto mais o que é uma mãe. Queria mesmo ter asas de mel para grudar-me nas nuvens e ficar voando o resto da vida, morrer devagar e aproveitar mais. Mas não foi assim, minhas asas eram de cera.

Agora é tarde para arrependimentos.