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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Primeiro diálogo

— Professor, o que é a justiça?
— O que é a justiça? Justiça é a característica que atribuímos àquilo que é justo, e que não há naquilo que é injusto.
—Mas, professor, como saber o que é justo e o que é injusto sem saber o que é a justiça?
— Justiça é um valor social essencial à vivência em sociedade. Por isso a noção de justiça é humana, existe em qualquer época, qualquer sociedade. E como ela é determinante à vivência em sociedade, muitos alegam a justiça ser apenas um valor subjetivo, um nome dado à deontologia de uma sociedade.
— Mas faz sentido que a justiça seja nada mais que um valor ético-moral que cada sociedade constrói para si.
— E faz sentido que haja um homem que não viva em sociedade?
— Hum, mas é possível, não é, professor?
— É? Seria novidade para mim que algum ser humano na face da Terra, sem que haja qualquer força maior que o obrigue a permanecer isolado, viva fora da sociedade. O ser humano, já dizia o Filósofo, é um ser necessaria e essencialmente político. Sabe de onde vem a palavra política?
— Roma?
— Não. É palavra de origem grega: pólis, assim chamavam os gregos suas cidades-Estado. Ou seja, político é aquele que vive na cidade, que participa da cidade. Um ser político é aquele que vive em sociedade na Cidade. Mas Aristóteles não quis dizer que o homem é urbano, mas que é animal social, necessariamente.
— Mas e os ermitões? Robinson Cruzoé?
— São exceções que só provam a regra.
— Mas são modos de sociedade diferentes, professor. A justiça pode até ser resultado da vivência social, mas se ela é uma, não deveria mudar de acordo com a organização e a moral de cada sociedade.
— Quem disse que muda? A justiça não é não lesar os outros, dar a cada um aquilo que lhe é seu e viver honestamente? Mas a justiça, ao ser aplicada, depende do que os povos tem por ser de cada um, o que é uma vida honesta e o que não lesa os outros, percebe? E são muito parecidos esses valores entre os povos, é só questão de saber como é aplicada a propriedade em cada sociedade.
— Propriedade?
— Sim, meu caro. Pense, se a justiça está em dar a cada um o que lhe pertence e não tomar o que não lhe pertence, os pertences são vistos como propriedade. Assim, se a esposa é visto como propriedade, o adultério é tido como injusto. Se as terras são vistas como propriedade absoluta, qualquer invasão ou atentado é tido como injusto. Quanto mais minuciosas são as leis que deveriam garantir a justiça, menos próximas da verdadeira justiça elas são, porque a justiça pressupõe princípios, e não regras detalhadas.
— Entendo, mas então as regras seriam desnecessárias para a justiça?
— É óbvio que não. A justiça precisa ser regrada dentro de uma sociedade para evitar abusos. Em primeiro lugar, aqueles que lidam em aplicar a justiça precisam, primeiramente, entendê-la, estudá-la, saber como ela é aplicada nas diversas sociedades, através do tempo e espaço. É por isso que, pelo menos nesta faculdade de direito, não aprendemos a ler o código, afinal isto toda pessoa devidamente alfabetizada o faz, mas aprendemos a trabalhar com a lei. O profissional de direito que decora a lei e estuda por ela corre o risco de não saber utilizar a funcionalidade jurídica dela, e não desenvolve raciocínio jurídico.
— Entendi, mas então todas as regras jurídicas são necessárias?
— Não necessariamente. Existem dois tipos de normas, as chamadas dispositivas, que podemos abrir mão, ou, pelo menos, que não faz diferença entre optar por fazê-la assim ou assada. Por exemplo: a lei de trânsito que regulamentou que os carros devem andar na mão direita é dispositiva, prova maior é que na Inglaterra a mão do motorista é a esquerda e uma não é mais justa que outra, é só para fins de organização. Entretanto, após se fizer essa opção é injusto o ato da pessoa que ande pela mão esquerda, não porque andar pela mão esquerda é injusto, mas porque a regra visa um fim para o bem da organização social, à qual ela também é submetida, e é injusto que ela, sem motivo justo, contrarie essa regra.
— Quer dizer que as normas dispositivas são as que podemos dispor como quisermos porque não há justiça maior numa das opções. Mas e qual é o outro tipo de norma?
— As outras normas são àquelas em que há justiça na opção, sendo as outras menos justas ou inconvenientes. Por exemplo: a norma que proíbe matar outra pessoa. Faz toda a diferença para o convívio social uma opção divergente dessa, não?
— Ué, mas e, por exemplo, no caso de legítima defesa?
— Alguém que se defende de uma agressão injustificada, desde que numa medida compatível com a própria agressão, não é alguém que defende o que é seu, sua vida, e impede que outra pessoa lhe prejudique e viva desonestamente, não pode ser considerado injusto.
— Professor, deixa eu ver se entendi. As regras são pautadas nos princípios que regem a justiça, certo?
— Certo.
— Os princípios são: não lesar terceiros, viver honestamente e dar a cada um o que é seu. Certo?
— Basicamente sim. Não esqueça que há mais princípios, mas esses são os principais.
— Enfim, e as regras são necessárias para as pessoas saberem o que devem, o que podem e o que não devem fazer, porque apenas os princípios não são suficientes, certo?
— Sim. Mais dúvidas.
— Acho que não.

1 comentários:

Ilderaldo Corrêa disse...

Quando o Tao está perdido,
o homem recorre à virtude.
Falhando a virtude, o homem recorre à humanidade.
Falhando a humanidade, o homem recorre à justiça.
Falhando a justiça, o homem recorre ao ritual.