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terça-feira, 8 de maio de 2018

Conto de inverno


O sangue congelou nas veias, iniciando a paralisar o ritmo cardíaco daquela alma. Braços estatelados, como rendidos numa cruz, mas sem pecados de outrora. Apenas o frio invadindo a pele, o corpo, o sangue. 

Pernas cruzadas em Lótus, qual flor cristalizada aguardando a eternidade. Rosto sereno em contraste com as emoções. 

Faltava-lhe a alavanca para sair da neve e escapar com vida daquele estado de paz. Os dedos arroxeados já indicavam a falta de tempo para reflexões de cunho decisório. 

A armadura que vestia em vida estava apertada, e a ferrugem já lhe contaminava os pulmões diariamente. Tantas pequenas amarguras, que somadas faziam-se monstruosas. Ou seria monstruoso ele, de tanto desejar sentir-se em paz e completude? Ou seria monstruoso aquele que o ensinou que é correto desejar tudo isso é sentir-se miserável se não alcançar? Quem é o monstro?

Não há mais tempo para reflexões inúteis, o sangue termina seu congelamento, o coração encerra o sofrimento, todo o corpo se paralisa e liberta a alma para penar em paz na neve.

terça-feira, 6 de março de 2018

Guardanapo






Enxugo minhas lágrimas e as guardo no guardanapo. Bato minhas pálpebras umas contras as outras na mesma frequência que o coração. Meu choro tímido e depositado conta as histórias das minhas desilusões.





Na mesa restam minhas mãos, apertando os polegares, esfregando o nervosismo, esperando a ansiedade passar. Na mesa restam as esperanças, as despedidas, as fraquezas e as comidas dela já frias. Nas mesa restam os pratos, os copos, e os jogos de talheres, postos cautelosos, angulados, no lapso de que provavelmente ela não virá hoje.





No interregno das discussões, sempre houvera espaço para as lágrimas, sempre guardadas com carinho, em meio a canções gravadas na mente, em meio a memórias de parques e telefonemas com assuntos fúteis (só para ouvir a voz). No interregno das estações, sempre fiz planos de viagens que não fizemos, filhos que não tivemos, dietas que não seguimos.





A culpa, o medo, o arrependimento, o tempo, a tristeza e o caos. Esse ciclo nos define?





Enxugo minhas lágrimas e as guardo no guardanapo. Espero o retorno dela, se ela retornar.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Crise de identidade


E o Édipo moderno se aproximou da Esfinge e foi questionado:
  • Para atravessar este portal é necessário que resolva este enigma: Que criatura possui três personalidades pela manhã, quatro contas diferentes na rede social, e mil caras ao entardecer?

Édipo então calma e friamente pensou, e após um intervalo breve respondeu:
  • É o humano. Dotado de internet bandalarga, smartphone e transferindo sua realidade para o mundo virtual, criou ilusões e necessidades que advém de aprovação em massa de pessoas desconhecidas, premissas irreais de que os demais contatos no tinder são reais, e expõe uma vida pŕopria inexistente e fantasiosa desejando causar inveja e desejo em todos a sua volta, os quais têm a mesma conduta por sinal.

A esfinge então meditou e refletiu que precisava alterar o resultado de suas charadas para outro objeto, já que a humanidade estava perdida, e lamentou profundamente a particular remoção de guardião de Tebas para um cassino qualquer em Las Vegas.

Enquanto isso, o rico Édipo moderno se deliciava no cassino e muito bem acompanhado.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O precioso indivíduo

sábado, 18 de novembro de 2017

Antidepressivo



Sai-se da fábrica aos prantos, construindo todos os dias as mesmas desilusões que serão distribuídas visando a completa nutrição de vaidades, egos e orgulhos. Cimentam-se as emoções e se impermeabilizam as dores, as chagas, os traumas. Não se fica mais triste ou abalado, há drogas para qualquer desconforto e solidão.

Sai-se da fábrica aos prantos, obreiros pranteadores e desolados, desnutridos e mal amados, confiantes em seu ingênuo trabalho de produção medicinal da anestesia, e da felicidade. Medica-se para esquecer como superar, como se frustrar, como se decepcionar, como fracassar, como vencer, como se lembrar, como sair da rotina. Medica-se para rir, festejar, dormir, não dormir, ler mais, render mais, ouvir menos, falar mais, pensar menos, ser menos, individuar menos.

Sai-se da fábrica aos prantos, produzindo-se remédios para serem distribuídos, vendidos e fornecidos em amostras grátis, viciando toda a população em felicidade.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Apontando

Há muito tempo construí uma ponte que ligaria meu coração ao teu, para juntos bombear as esperanças de um para o outro, e de outro para um.

Ponte estaiada, mas que nos liga de uma forma pouco convencional mas muito sincera. O oceano de dúvidas, medos e inseguranças que nos sustenta está turvo hoje. Misturado com a borra de café, é possível adivinhar o futuro.

Como arquiteta, ela aponta os lápis e desenha a construção em quadrinhos, prancha a prancha, parafusando as ideias umas nas outras. Como artista, ela criou uma história suave, sem tantos balanços, e um punhado de cachorros para dar estabilidade. Como desenhista, ela escorre água pelas bordas, manchando as cores, mesclando-as com nossas emoções. Como inventora, ela já planejou tudo, toda uma vida, tatuou nossas mãos entrelaçadas.


Os cabelos amarrados na lateral indicam a meninice com que me imagina daqui a quinze anos, sentado numa mesa redonda com um suco natural de melancia, estudando para o vestibular.

domingo, 25 de setembro de 2016

Sufocamento

Hoje não preciso me alimentar, nada pode preencher esta vazio que me assombra. Vivo novamente o fantasma, meu coração treme ao constatar que estou novamente a adoecer das frustrações mal resolvidas, dos mimos que não recebo, das expectativas quebradas pela vida que se impõe sólida em minhas mãos.

Amargo meus sabores e meus gostos revoltados, que não fazem jus à minha vontade, e não se importam com minha desesperança. Reluto na minha entrega, recrio meus monstros, repenso meus valores e refaço meu escudo. Disfarço o quanto consigo para esconder a falta de coragem de encarar o espelho, espero julgamento brando por minha covardia e anseio solitária o meu destino.

Minha alma espremida entre minhas lágrimas e angústias questiona o tempo todo minhas escolhas. Por hora, ergo a cabeça e caminho, aguardando as novas pedras e curvas da estrada.  Minhas ansiedades e ânsias se misturam, confundem meu estômago e meus sentimentos, não percebo os limites entre minha mente e meu corpo.

Os risos espaçaram, assim como as batidas do coração. Aguardo o sangue voltar a ser bombeado aos pulmões e respirar o ar pacificamente. Aguardo as letras voltarem a meus lábios. Aguardo os dedos retornarem as minhas mãos. Aguardo o tempo passar e me levar ainda melhor.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Abandono

Estou abandonada pelo meu próprio Ego, fui expulsa de minhas vontades e mecanizada para trabalhar funcionalmente, apresentando resultados satisfatórios. Metas vencidas e não pagas, metas cumpridas e não trabalhadas, vivo desfazendo metas e as vivenciando.

Estou abandonada dos meus sonhos, todos eles quando arranhados foram deformados, tornando-se experiências cansativas e insistentes. As ranhuras das minhas modelagens dão à argila uma feição sofrida, sangrada. Emolduro minha arte, pesquiso a soma de intenções alheias, confronto a solidão e decido realizar a exposição do meu interior aqui: sem galeria, sem moça bonita recebendo convidados, aliás, sem convidados.


Exponho toda a minha dor, assalto minhas emoções e cá estou, solitária, verminosa, e carente. Visto uma jaqueta de coragem, tomo fôlego e retomo a caminhada, pé ante pé, silenciosa e vagarosamente divago minha trilha de tijolos amarelos, em busca do Mágico de Oz.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A perda


As minhas saudades são reverberantes, e as sinto até os ossos, fazendo as costelas oprimirem a respiração. Minhas saudades fazem meus dedos tremerem, contorcerem o ar enquanto massageiam a traqueia desoxigenada. Sintonizo as lembranças e as lágrimas brotam incontroláveis; salmouras, e dessecam minhas lembranças, conservando-as em minha alma.

O meu amor duradouro remanesce à sua perda; meu amor é bombeado conjuntamente no ritmo dos batimentos. O meu amor resguardado é salteado, refogado e refogueia em minhas mãos, enquanto tento lhe alcançar. O meu convalescente seca o sangue condoído de minhas veias, escorrido do coração.


A minha perda é insondável, imensurável e sem prazo. A minha perda me perdeu no tempo, nas lembranças, nas lágrimas e nas saudades. A minha perda é silenciosa, respirar tornou-se dolorido hoje, e o sono um refúgio para lhe encontrar. A minha perda é irretratável, e somente a perda de mim poderá solucionar. A minha perda foi a solução incabivel, e me deixou inconsolável. Eu lhe perdi, mas amei teu amor.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Suco de mexerica

A mexerica é uma fruta democrática, divide-se entre tantos palatos e oferece seu suco a várias sedes. Gomos de mexericos democráticos espalhando-se nas bocas de todos, espalhando acidez e cítricos dentre os democráticos mexeriqueiros. Democratas mexem suas línguas em busca de vitaminas para seus discursos, enchem sua bocas de insumos adocicados e preenchem as cabeças dos feirantes.

A expectativa assassina da esperança se instala nas gargantas dos consumidores. E aos poucos a espera se torna costume, e o costume se torna comum. E assim, todos esperançamos sem espera, e sem alcance. E todos oramos e rezamos. E todos regurgitamos pelos canudos o que bebemos do copo para a mente. E todos sentamos enquanto descascamos mexericas. E todos cuspimos fora as sementes, para que não brotem.

A sede não é de coca-cola, mas de vitaminas C, de sabor ácido, de angústias novas, de frutose e lágrimas. A sede não é saciada, nem aliviada pelo suco de mexerica, a sede será eterna, assim como a espera de todos pela democracia.


A mexerica é uma fruta democrática, barata, vendida em bacias nas feiras. Chega em todas as casas, por meio da televisão e das revistas. A mexerica é fruta pop, fruta top, satisfaz a realidade brasileira. 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Hoje é dia de Maria

Hoje meu dia é feito de poesia, quase um drama shakesperiano, com direitos a grandes tragédias e desilusões, mas sem o costumeiro veneno que impregnou a pena do mestre. Minha vida ganhou balanço de conquistas e frustrações, e por hora atravessarei nova fase, cansei dos antigos obstáculos e dos mesmos monstros.

E minha poesia lírica ganhou trilha sonora, um violino belíssimo que me acompanha desde o berço cria maravilhosas composições conforme inauguro os dias de cada dia. E respiro de hora em hora acompanhando todas as mudanças de estações.

Hoje meu dia foi regado a café, com pouco açúcar. Meu café arábico e nacional, que desperta a insônia em meus olhos, e permite a minha mente desfocar. Meus cílios não se cruzam a semanas, e meus sonhos se perderam no vão do travesseiro e não me permito a mais esperanças que as que já acumulei. Meus planos traçados são a causa de minha impaciência e meu conforto.

Agora meu dia está ensolarado, e chega a ser causticamente. Resseco aos poucos expelindo a água na minha respiração enquanto o calor me consome as narinas secas. Agora minhas mãos estão secas, descascando a pele ofendida e rachando a cutícula, deixo meus dedos abrirem e sangrarem, choram meu sangue pelos pecados em que toquei.

E minha poesia lírica ganhou pintura em óleo, pinto a dedo a tela mental em que imagino meu futuro, pinto a dedo a tela de tecido frágil em que me imagino tomando chá de hortelã, admirando a lua pela janela.

Assim meu dia vai passando, vai andando com as próprias pernas até me deixar para trás, atrás do meu tempo. Estou atrasada, extravasada nas minhas emoções e caretas. Estou cansada de descorrer e discorrer mentalmente os lances do cotidiano.


Confesso minhas lamúrias, e aguardo pacientemente o amanhã. 

domingo, 27 de março de 2016

As ilusões




Compro ilusões, todos os dias e a qualquer hora, afinal a vida empiricamente sem as ilusões é mera sobrevivência. Minhas ilusões são necessárias a alegria, tristeza e demais emoções. Meu coração iludido é constrito aos apegos que a ida proporcionou. Meu coração é uma caixa de pandora, em que guardo todos os doces e algumas ilusões, as importantes. Trata-se de uma verdadeiro porta-joias, e um porta-desilusões, que guarda minhas memórias mais desgostosas como pedras sem preciosidade, por mero colecionismo.

Compro novas ilusões, novas oportunidades de apegos e desapegos, novas oportunidades de frustrações e lamentações, novas oportunidades de expressar a minha ansiedade.

Vivo e sobrevivo de meu status e meu orgulho, alimento minhas vaidades, e sigo conquistando mais e mais aborrecimentos. Meu coração aborrecido e condoído distorce a realidade, apegado a migalhas de sonhos, migalhas de fantasias e migalhas de pães.

Vivo velhas ilusões, como jornais passados acumulados num canto da sala. Acredito em tais valores e percorro os mesmos tijolos, realocando-os um a um no caminho que traço. Vivo velhas chantagens, permanecendo acuada pelos medos transformados em medos, Vivo velhas memórias, recordo o passado de meus antepassados para abrilhantar um futuro incerto.

Meu coração é um porta-desilusões de memórias ruins, memórias velhas. Meu coração não esqueceu. Meu coração se iludiu de novo.