Eu nasci assim, com penas no lugar dos dedos, com tinta no
lugar de sangue, com metáfora no lugar da lógica. Meus neurônios não se
conectam, mas se consolam. E choram, e amarguram, o triste fim da poetisa. Ó
querida, cadê teu orgulho? Cadê tua poesia? Foram embora, respondo com calma.
Fui abandonada pela inspiração, pela transpiração da escrita, pelo tremor da
noite que me consumia os nervos. Fui deixada pela lava que outrora queimava a
sola dos meus pés e me lancinava a calma. Cadê aquele fogo que me atormentava?
Cadê aquela quentura que me incitava a choramingar, a respingar minha alma pelo
chão.
Mas não, ora percebo que o inferno ainda está sob meus pés,
ora vejo que a brasa derrete minha pele e lambe meu calcanhar. Triste poetisa,
escreva teu nome na areia e assista à onda do mar apagá-lo, e repete, repete, repete. E
repentinamente perceba que o mar cada vez menos apaga teu nome, e que deixa tua
marca no mundo. E o teu sangue azul
risca o céu, confundindo-se com o reflexo do oceano, e os teus dedos de pena
desenham a tristeza no oceano, refletindo-a
no céu.
E segue tudo azul, tudo blues, ao som de Nina Simone, ao som
das nuvens no céu, que reproduzem calmamente as ondas do mar. E a minha língua
sufoca, incha-se de frases não ditas,
perguntas não feitas, dúvidas
respondidas pela imaginação. E a
minha língua se contorce, soletrando o alfabeto do futuro. E a minha língua
desinfla, aliviando o peso dos planos outrora abortados. Cerro os dentes, a fim
de segurar comigo as lembranças mal dormidas da minha história.
Mas para que tanta história, Poetisa? Por que guarda seus
livros anuais de acontecimentos e aborrecimentos? Por que conserva tua caixinha
de bobeiras, cheia de embalagens dos sorvetes tomados na tua vida toda? Não
posso me dar ao luxo de responder a todas essas questões, não preciso de motivo
para guardar o que eu acho que usarei no futuro, e do que tenho certeza que uso
no presente. Não hoje, hoje a nostalgia transcendeu a minha alma de poetisa,
hoje minhas sapatilhas de bailarina estão cobertas pelo meu sangue, riscando o
palco com meu balé provinciano e desenhando meu rosto. Não hoje, hoje choro
minhas faltas, implorando pela redenção que nunca chegou, pagando pelos pecados
que não cometi, pelas promessas que cumpri, pelos meus acertos, por tudo que
ainda resultou no meu fracasso. Hoje não, hoje eu sou mistério policial, hoje
eu sou feita de elementos surreais, hoje eu cansei.