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sexta-feira, 26 de julho de 2013

A poetisa

Eu nasci assim, com penas no lugar dos dedos, com tinta no lugar de sangue, com metáfora no lugar da lógica. Meus neurônios não se conectam, mas se consolam. E choram, e amarguram, o triste fim da poetisa. Ó querida, cadê teu orgulho? Cadê tua poesia? Foram embora, respondo com calma. Fui abandonada pela inspiração, pela transpiração da escrita, pelo tremor da noite que me consumia os nervos. Fui deixada pela lava que outrora queimava a sola dos meus pés e me lancinava a calma. Cadê aquele fogo que me atormentava? Cadê aquela quentura que me incitava a choramingar, a respingar minha alma pelo chão.

Mas não, ora percebo que o inferno ainda está sob meus pés, ora vejo que a brasa derrete minha pele e lambe meu calcanhar. Triste poetisa, escreva teu nome na areia e assista à onda do mar apagá-lo, e repete, repete, repete. E repentinamente perceba que o mar cada vez menos apaga teu nome, e que deixa tua marca no mundo. E o teu sangue azul risca o céu, confundindo-se com o reflexo do oceano, e os teus dedos de pena desenham a tristeza no oceano, refletindo-a no céu.

E segue tudo azul, tudo blues, ao som de Nina Simone, ao som das nuvens no céu, que reproduzem calmamente as ondas do mar. E a minha língua sufoca, incha-se de frases não ditas, perguntas não feitas, dúvidas respondidas pela imaginação. E a minha língua se contorce, soletrando o alfabeto do futuro. E a minha língua desinfla, aliviando o peso dos planos outrora abortados. Cerro os dentes, a fim de segurar comigo as lembranças mal dormidas da minha história.


Mas para que tanta história, Poetisa? Por que guarda seus livros anuais de acontecimentos e aborrecimentos? Por que conserva tua caixinha de bobeiras, cheia de embalagens dos sorvetes tomados na tua vida toda? Não posso me dar ao luxo de responder a todas essas questões, não preciso de motivo para guardar o que eu acho que usarei no futuro, e do que tenho certeza que uso no presente. Não hoje, hoje a nostalgia transcendeu a minha alma de poetisa, hoje minhas sapatilhas de bailarina estão cobertas pelo meu sangue, riscando o palco com meu balé provinciano e desenhando meu rosto. Não hoje, hoje choro minhas faltas, implorando pela redenção que nunca chegou, pagando pelos pecados que não cometi, pelas promessas que cumpri, pelos meus acertos, por tudo que ainda resultou no meu fracasso. Hoje não, hoje eu sou mistério policial, hoje eu sou feita de elementos surreais, hoje eu cansei. 

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